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terça-feira, 16 de agosto de 2011

Roleta russa dos medicamentos


Remédios falsificados movimentam uma rede crescente de criminosos no Brasil e atingem, na outra ponta, milhares de consumidores já que o uso desses produtos pode causar consequências danosas à saúde




Foram duas viagens ao shopping mais popular de Belo Horizonte para comprar a pílula azul paraguaia, o Pramil, um remédio para disfunção erétil que é proibido no país e está na lista dos medicamentos falsificados mais vendidos no Brasil. Na primeira vez, olhares desconfiados e balanços negativos de cabeça. Da segunda, os argumentos usados foram um aniversário de dez anos de namoro e uma imensa vontade de comemorar. E bastaram. A abordagem foi a funcionários de uma loja de equipamentos eletrônicos indicada como revendedora também de remédio falso. Vendiam, mas pela conversa houve algum problema com a rota de medicamentos. Pergunta dali, pergunta daqui, a abordagem chegou a um rapaz na faixa dos 16, 17 anos que, diante do pedido, desapareceu e três minutos depois voltou com uma cartela com 20 comprimidos, vendidos a 40 reais.
Não foram difíceis também os contatos de dois revendedores pela internet. Neste caso, um vendia o abortivo Cytotec e outro uma panaceia de remédios que iam de anabolizantes a medicamentos veterinários, usados como esteróides. Fluoxetina (antidepressivo) e outros produtos para regimes, muitos de tarja preta, também seduzem os hipocondríacos de plantão. A promessa é que todos vinham com embalagem com lacre diretamente do fabricante. Mas um dos vendedores, no decorrer da conversa, acabou se entregando – era ele o bioquímico responsável pela fabricação. Não houve como saber se essa informação era verdadeira ou um blefe.
O mais perverso da história dos remédios falsos é que não se sabe quem foi o fabricante. Na prática, é como uma bomba relógio – não há controle da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, em efeito cascata, também não se sabe se houve um bioquímico responsável, se a dosagem de todos os componentes da fórmula está certa, se houve a assepsia necessária ou se aquele remedinho saiu direto de uma fabriqueta de fundo de quintal. E tudo isso, caro leitor, pode acabar mal para o consumidor desavisado que  encontra facilidades demais para comprar tais medicamentos com procedência duvidosa no Brasil.
Prática corriqueira em muitos lugares, a venda dos medicamentos falsificados é invisível no país – eles entram no bolo gigante de todos os produtos frutos de pirataria. Não há estimativa dos órgãos responsáveis de mortes com a utilização desses medicamentos, quem são seus maiores compradores e por que o consumidor final se arrisca, se não sabe qual será o efeito e, na pior das hipóteses, se não colocará em risco sua vida. A Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF) estima em 80 bilhões de reais o comércio de todos os produtos. É uma fatia considerável dos dados divulgados pela Interpol de 522 bilhões de dólares em todo o mundo. Os remédios são medidos em toneladas. Somente até agosto deste ano, dados da Anvisa indicam que foram 316 toneladas contra 45,5 no mesmo período de 2008. No mundo, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 20% dos remédios vendidos são falsos. “O motivador desse aumento é que a pirataria em geral é um crime de alta lucratividade. Apesar de, no caso de medicamentos, a legislação brasileira ser severa, essa atividade é uma fonte para o financiamento do crime com baixo risco”, afirma o secretário executivo do Ministério da Justiça e presidente do Conselho Nacional de Combate à Pirataria, André Barcellos.
Na prática, vender medicamentos falsificados é crime hediondo no país. A pena varia de 10 a 15 anos de reclusão. Não é impeditivo para o vendedor de internet que se identificou como Eduardo, que tem site anunciando uma lista com mais de cem medicamentos. “Não trabalho com mercadorias do Paraguai para evitar produtos falsos”, diz no decorrer de uma conversa pelo MSN. Confiável? Nem um pouco. “Sou bioquímico e faço de tudo um pouco”, diz ao receitar dois remédios tarja preta para perda de peso.
A perspectiva de serem presos e condenados também não assusta contrabandistas e quadrilhas que atuam na fronteira entre Brasil e Paraguai. É de lá que saem, mensalmente, uma grande parte dos remédios falsificados que seguem rotas para São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Goiás, Brasília e Sul do país. Segundo estimativas da ABCF, 90% de todos os remédios falsificados no país entram por essa fronteira. Os outros 10% são manipulados no próprio país sem o princípio ativo.
O delegado da Polícia Federal em Foz do Iguaçu, Marco Berzoini Schmith, afirma que as pessoas que fazem esse tipo de contrabando não têm perfil definido e fazem coisas impensáveis para conseguir contrabandear o medicamento falsificado. Para fazer com que a carga chegue ao país, quadrilhas utilizam crianças, idosos, carros e ônibus com fundos falsos, barcos que carregam os produtos para o Brasil via lago de Itaipu e rio Paraná. “Na segunda semana de outubro, fizemos uma apreensão recorde, com 50 mil comprimidos para disfunção erétil e Cytotec, além de mais de 20 mil ampolas de anabolizantes. Mensal­mente essas apreensões geram de 25 a 30 prisões. São pessoas do Brasil inteiro. A pena é cavalar, maior que a do tráfico, mas isso não assusta as pessoas”, diz Schmith.
Na internet, a venda é mais assustadora. O delegado Bruno Tasca, da Delegacia Especializada de Repressão ao Crime Informático e às Fraudes Eletrônicas (Dercife), em Belo Horizonte, fez para a reportagem uma busca 8 pela palavra Cytotec no Google e encontrou 314 mil páginas. Ele diz que o Brasil tem muito que caminhar quando se trata de crimes cibernéticos. O grande desafio de seu trabalho é adequar as condutas da internet ao Código Penal e concluir um trabalho de investigação que pode demorar meses. E isso não é garantia de que, ao final, aconteçam prisões de culpados. “Temos um laboratório de informática que trabalha, continuamente, na busca dos casos mais relevantes de medicamentos falsificados. É preciso identificar o IP (Internet Protocol) dos computadores, mas a cada passo são necessários mandados judiciais e, por vezes, isso nem sempre é rápido”, afirma Tasca.
Seja no mundo virtual ou real, a luta contra os medicamentos falsificados,  para o chefe de inteligência da Anvisa, Adilson Bezerra, tem o consumidor como peça fundamental para desmantelar esse comércio. “A maioria das operações realizadas até hoje foi a partir de denúncias feitas por consumidores”, diz. As denúncias recaem, geralmente, segundo Bezerra, nos pequenos comércios do interior do Brasil, que não têm alvará de funcionamento, mas vendem medicamentos para a população. Ela ocorre por desconfiança da procedência desses remédios ou simplesmente porque não fazem o efeito desejado. “São pequenas farmácias, drogarias, sem um farmacêutico atuante ou presente”, afirma.
O diretor do Sindicato dos Farmacêuticos de Minas Gerais, Albano Verona, alerta os consumidores que é preciso pesar a questão do preço menor em detrimento do risco de vida. Para ele, é uma economia somente aparente, já que um medicamento falsificado pode trazer consequências desastrosas para a saúde e até provocar sua morte. “É preciso que os órgãos públicos façam campanhas de conscientização para que as pessoas não comprem esse tipo de medicamento, dentro e fora das farmácias. É um círculo vicioso. Só existe comércio porque há quem consuma. A grande questão para essas pessoas é: sua vida tem preço?”, diz Verona.
Educar a população de forma positiva para que ela saiba identificar os remédios verdadeiros é o mote de uma campanha da Anvisa para o próximo ano. Segundo o chefe de inteligência do órgão, Adilson Bezerra, outra aposta é a implementação da rastreabilidade para produtos farmacêuticos, quando será possível acompanhar a rota percorrida por unidade de medicamento desde o processo de embalagem até a sua distribuição final. “É uma tecnologia que estará nas embalagens dos medicamentos e permitirá ao consumidor, via internet, saber se aquele produto é verdadeiro ou falsificado”, observa Bezerra. 
Porém, a rastreabilidade, como indica a especialista em proteção a produto do laboratório Eli Lilly do Brasil, Monica Hattori, não será efetiva para a cadeia informal de distribuição (produtos manufaturados em indústrias e comercializados ilegalmente). O laboratório é fabricante do Cialis, um dos produtos que mais sofrem falsificação no Brasil. “O processo da rastreabilidade será um aliado para a população, no combate contra os produtos falsificados. No entanto, a efetividade do processo, com certeza, será maior quanto maior for o esclarecimento da sociedade. Mas, na cadeia informal, a falsificação vai continuar ocorrendo”, diz.

Texto: Eliana Fonseca | Fotos: Daniel de Cerqueira
revistaviverbrasil.com.br

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